Cap.
VIII – Item 7
De volta à
reencarnação, em breve tempo, sou trazido ao vosso recinto de oração e
fraternidade por benfeitores e amigos para que algo vos fale de minha história
– amargo escarmento aos levianos do ouvido e aos imprudentes da língua.
Sem ornato verbal de
qualquer natureza, em minha confissão dolorosa, passo diretamente ao meu caso
triste, à maneira de um louco que retorna ao juízo, depois de haver naufragado
na vileza de um pântano.
Há alguns anos, em
minha derradeira romagem na Terra, era eu simples comerciário de hábitos
simples.
Com pouco mais de
trinta anos, desposei Marina, muito mais jovem que eu, e, exaltando a nossa
felicidade, construímos nosso paraíso doméstico, numa casa pequena de
movimentado bairro do Rio de Janeiro.
Nossa vida modesta
era um cântico de ventura, entretecido de esperanças e preces; todavia, porque
fosse, de ordinário, desconfiado e inquieto, amava minha esposa com doentia paixão.
Marina era muito
moça, quase menina...
Estimava as cores
festivas, o cinema, a vida social, a gargalhada franca e, por guardar
temperamento infantil, a curto espaço teve o nome enlaçado à maledicência que
fustiga a felicidade, como a sombra persegue a luz.
Em torno de nós,
fez-se o “disse-me-disse”.
Se tomávamos um
bonde, éramos logo objeto de olhares assustadiços, enquanto se cochichava,
lembrando-se-nos o nome...
Se passávamos numa
praça, éramos, quase sempre seguidos de assovios discretos...
Começaram para mim os
recados escusos, os telefonemas inesperados, as cartas anônimas e os conselhos
de família, reunindo várias acusações.
– “Marina desertara
dos compromissos ao lar.”
– “Marina era ingrata
e infiel.”
– “Marina respirava
numa poça de lama.”
– “Marina tornara-se
irregular.”
Muitas vezes, minha
própria mãe, zelosa de nosso nome, chamava-me a brios, indicando-me
providências.
Amigos segredavam-me
anedotas irreverentes com sentido indireto.
Lutas enormes do
sentimento ditavam-me desesperados conflitos.
Acabou-se em casa a
alegria espontânea.
Debalde, a
companheira se inocentava, alertando-me o coração; entretanto, densas trevas
possuíam-me o raciocínio, induzindo-me a criar assombrosos quadros em torno de
faltas inexistentes.
Como se eu fora puro,
exigia pureza em minha mulher. Qual se fosse santo, reclamava-lhe santidade.
Deplorável cegueira
humana!
Foi assim que, numa
tarde inesquecível para o remorso que me vergasta, tilintou o telefone, buscando-me para aviso.
Três horas da
tarde...
Anuncia-me alguém ao
cérebro atormentado que um estranho se achava em meu aposento íntimo.
Desvairado, tomei de
um revólver e busquei minha casa.
Sem barulho, penetrei
nossa câmara e, de olhos embaciados no desespero, vi Marina curvada, ao lado de
um homem que se curvava igualmente a dois passos de nosso leito.
Não tive dúvida e
alvejei-os, agoniado... Vi-lhes o sangue a misturar-se, enquanto me deitavam
olhares de imensa angústia, e porque não pudesse, eu mesmo, resistir a tamanha
desdita, estilhacei meu crânio, com bala certa, caindo, logo após, para acordar
no túmulo, agarrado a meu corpo, mazelento e fedentinoso, que servia de engorda
a vermes famintos.
Em vão busquei
desvencilhar-me do arcabouço de lama, a emparedar-me na sombra.
Gargalhadas irônicas
de Espíritos infelizes cercavam-me a prisão.
Descrever minha pena
é tarefa impossível no vocabulário dos homens, porque o verbo dos homens não
tem bastante força para pintar o inferno que brame dentro da alma.
Por muito tempo,
amarguei meu cálice de aflição e pavor, até que mãos amigas me afastaram, por
fim, do cárcere de lodo.
Vim, então, a saber
que Marina, sem culpa, fora sacrificada em minhas mãos de louco.
Esposa abnegada e
inocente que era, simplesmente pedira a um companheiro da vizinhança consertasse, em nosso quarto humilde, a tomada elétrica desajustada, a fim de
passar a roupa que me era precisa para o dia seguinte.
Transido de vergonha
e enojado de mim, antes de suplicar perdão às minhas pobres vítimas, implorei,
humilhado, a prova que me espera...
E é assim que,
falando às almas descuidadas que cultivam na Terra o vício da calúnia, venho
dizer a todas, na condição de um réu, que para me curar da própria insensatez
roguei ao Pai Celeste e me foi concedida a bênção de meio século de doença e
martírio, luta e flagelação na
dor de um corpo cego.
Júlio
Fonte:
O Espírito da Verdade
Francisco
Cândido Xavier - Waldo Vieira
imagem: google
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