(Jésus Gonçalves)
Não te admitas réu de
afrontosa sentença,
Largado de hora em hora
a sombra em que te esmagas,
Varando tanta vez
humilhações e pragas
À feição de calhaus da
humana indiferença.
Crueldade, paixão, injúria,
crime, ofensa
Criaram-nos, um dia, a
estamenha de chagas!…
No pretérito abriste o
espinheiro em que vagas
E, embora a provação,
trabalha, serve e pensa.
Ânsia, tribulação,
abandono, amargura,
São recursos da lei com
que a lei nos depura
O coração trancado em nódoas
escondidas…
Bendize, amado irmão, as
feridas que levas,
A dor extingue o mal e o
pranto lava as trevas
Que trazemos em nós dos
erros de outras vidas.
Comentários J. Herculano
Pires
Jésus Gonçalves utiliza em seus versos expressões como túnica
de chagas e estamenha de chagas para figurar a condição em que viveu
no final da sua ultima existência terrena. A túnica de estamenha, grosseiro
tecido de lã, era vestimenta comum na Judeia do tempo de Jesus. Evidente o
simbolismo poético dessas expressões. Os judeus pobres vestiam-se de estamenha,
enquanto os ricos usavam túnicas refulgentes dos mais finos tecidos. Mas na vida espiritual essa
situação se invertia, como vemos na parábola evangélica de Lazaro e o rico.
No soneto de Jesus Gonçalves vemos o mesmo processo. A estamenha
de chagas é tecida no passado da própria criatura pela sua crueldade e a sua
arrogância. No tear do destino os fios da loucura humana são tecidos pelas
nossas ações. E aquilo que tecemos e precisamente o que iremos vestir em próxima
existência. Ninguém, portanto, está sujeito na Terra a uma “afrontosa sentença”,
mas apenas submetido as consequências de seu próprio comportamento em vida
anterior. A cada um segundo as suas obras, porque somente assim aprenderemos a vencer
o mal, a superar nossas tendências inferiores, nosso egoísmo criminoso.
Os “recursos da lei” não representam condenação implacável, mas
corrigenda necessária. Por isso escrevia Leon Denis: “A dor e uma lei de
equilíbrio e educação”. Mas nem por isso devemos pensar que os sofredores não
devem ser socorridos. A lei maior da caridade nos obriga a ajudar os que
sofrem. É verdade que “a dor extingue o mal e o pranto lava as trevas”, mas a
indiferença ante a dor e o pranto do próximo é também um mal que pode e deve
ser extinto pela caridade. Socorrendo os que sofrem estaremos tecendo, no tear
do nosso destino, os fios da sensatez e da bondade que nos preparam uma túnica
de luz para o futuro.
Fonte: Na Era do
Espírito – Chico Xavier/José Herculano Pires
imagem: google
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