Cap.
XIV – Item 9
Meu filho, dito esta
carta para que você saiba que estou vivo.
Quando você me
estendeu a taça envenenada que me liquidou a existência, não pensávamos nisso.
Nem você, nem eu.
A idéia da morte
vagueava longe de mim, porque esperava de suas mãos apenas o remédio
anestesiante para a minha enxaqueca.
Entendi tudo, porém,
quando você, transtornado, cerrou subitamente a porta e exclamou com frieza:
– Morre, velho!
As convulsões que me
tomavam de improviso, traumatizavam-me a cabeça...
Era como se afiada
navalha me cortasse as vísceras num braseiro de dor.
Pude ainda, no
entanto, reunir minhas forças em suprema ansiedade e contemplar você, diante de
meus olhos.
Suas palavras
ressoavam-me aos ouvidos: – “morre, velho!”
Era tudo o que você,
alterado e irreconhecível, tinha agora a dizer.
Entretanto, o amor em
minh’alma era o mesmo.
Tornei à noite
recuada quando o afaguei pela primeira vez.
Sua mãezinha dormia,
extenuada...
Pequenino e tenro de
encontro ao meu peito, senti em você meu próprio coração a vagir nos braços...
E as recordações
desfilaram, sucessivas.
Você, qual passarinho
contente a abrigar-se em meu colo, o álbum de fotografias em que sua imagem
apresentava desenvolvimento gradativo em todas as posições, as festas de
aniversário e os bolos coloridos enfeitados de velas que seus lábios miúdos
apagavam sempre numa explosão de alegria... Rememorei nossa velha casa, a
princípio humilde e pobre, que o meu suor convertera em larga habitação, rica e
farta... Agoniado, recordei incidentes, desde muito esquecidos, nos quais me
observava expulsando crianças ternas e maltrapilhas do grande jardim de inverno
para que nosso lar fosse apenas seu... Reencontrei-me, trabalhando, qual
suarento animal, para que as facilidades do mundo nos atendessem as ilusões e
os caprichos...
Em todos os quadros a
se me reavivarem na lembrança, era você o grande soberano de nosso pequeno
mundo...
O passado continuou a
desdobrar-se dentro de mim. Revisei nossa luta para que os livros lhe
modificassem a mente, o baldado esforço para que a mocidade se lhe erigisse em
alicerce nobre ao futuro... De volta às antigas preocupações que me assaltavam, anotei-lhe, de novo,
as extravagâncias contínuas, os aperitivos, os bailes, os prazeres, as
companhias desaconselháveis, a rebeldia constante e o carro de luxo com que o
presenteei num momento infeliz...
Filho do meu coração,
tudo isso revi...
Dera-lhe todo o
dinheiro que conseguira ajuntar, mas você desejava o resto.
Nas vascas da morte,
vi-o, ainda, mãos ansiosas, arrebatando-me o chaveiro para surripiar as últimas
jóias de sua mãe...Vi perfeitamente quando você empalmou o dinheiro, que se
mantinha fora de nossa conta bancária, e, porque não podia odiá-lo, orei –
talvez com fervor e sinceridade pela primeira vez – rogando a Deus nos abençoasse
e compreendendo, tardiamente, que a verdadeira felicidade de nossos filhos
reside, antes de tudo, no trabalho e na educação com que lhes venhamos a honrar
a vida.
Não dito esta carta
para acusá-lo.
Nem de leve me passou
pelo pensamento o propósito de anunciar-lhe o nome.
Você continua sangue
de meu sangue, coração de meu coração.
Muitas vezes, ouvi
dizer que há filhos criminosos, mas entendo hoje que, na maioria das
circunstâncias, há, junto deles, pais delinqüentes por acreditarem muito mais
na força do cofre que na riqueza do espírito, afogando-os, desde cedo, na
sombra da preguiça e no vício da ingratidão.
Não venho falar,
assim, unicamente a você, porque seu erro é o meu erro igualmente. Falo também
a outros pais, companheiros meus de esperança, para que se precatem contra o
demônio do ouro desnecessário, porque todo ouro desnecessário, quando não busca
o conselho da caridade, é tentação à loucura.
Há quem diga que
somente as mães sabem amar e, realmente, o regaço materno é uma bênção do
paraíso. Entretanto, meu filho, os pais também amam e, por amar imensamente a
você, dirijo-lhe a presente mensagem, afirmando-lhe estar em prece para que a
nossa falta encontre socorro e tolerância nos tribunais da Divina Justiça, aos
quais rogo me concedam, algum dia, a felicidade de tê-lo novamente ao meu lado,
por retrato vivo de meu carinho... Então nós dois juntos, de passo acertado no
trabalho e no bem, aprenderemos, enfim, como servir ao mundo, servindo a Deus.
J.
Fonte:
O Espírito da Verdade
Francisco
Cândido Xavier - Waldo Vieira
imagem: google