A
cura das enfermidades, quando possível, necessita, antes de tudo, do interesse
do doente. Ninguém pode se curar no lugar dele. Embora seja óbvia essa
ponderação, há pessoas que, apesar de doentes, não demonstram interesse em
recuperar a saúde, não aceitando o tratamento indicado.
A vontade de se curar ganha relevância quando o
paciente a ser tratado é o dependente químico. Não se pode esquecer que a
descoberta do problema poderá se deparar com um obstáculo a ser vencido? “Não
sou viciado, paro quando quero”, é o que dizem. Mas, caso se insista, poderá
dizer um enérgico: “Não me aborreça!”.
Nesse caso, será exigida dos familiares compreensão e
paciência, com reaproximação afetiva e discreta do jovem sob tormenta, sob o
cuidado de não assumir de um momento para o outro o controle de sua vida. Isso
irá afastá-lo mais.
O importante é estabelecer um clima de confiança, com
um diálogo amigo e respeitoso, capaz de levar ao entendimento. A partir daí,
haverá menos dificuldades em aceitar o tratamento. É evidente que, se desde
logo houver o reconhecimento da dependência, as possibilidades de reabilitação
se ampliam.
Todavia, é preciso ficar claro que o tratamento da
dependência de drogas não significa a internação do paciente. São as
constatações acerca da freqüência e espécie de droga consumida que ajudarão a
definir a espécie de tratamento a ser buscado, como visto.
Quando se tratar da dependência do álcool, com o
consumo diário, haverá necessidade de internação hospitalar para se atenuar os
sintomas da ceise de abstinência, provocados pela falta da bebida no organismo,
que reagirá intensamente durante o período de desintoxicação.
Essa internação é apenas preparatória para o ingresso
em programa de reabilitação de longa duração, que poderá ser em regime de
internato ou n ao, dependendo das condições físicas, psicológicas e sociais do
paciente. Em todo caso, será importante integrá-lo em grupos de autoajuda.
Porém, o maior desafio no tratamento do alcoolismo, sem a internação, está na
mistura que o paciente costuma fazer ao tomar os remédios recomendados e beber
escondido.
Se o consumo for somente de maconha, ainda que diário,
é importante que se tente inicialmente o tratamento com psicólogos, grupos de
autoajuda, e por fim avaliação psiquiátrica, sem internação.
No entanto, se a dependência instalada for de cocaína
ou crack, associadas ou não a outras drogas, somente com a internação será
possível tratar o paciente, pelas graves conseqüências que essas drogas
produzem no corpo e na mente. Só não se justifica a internação se o consumo
dessas drogas for esporádico.
Deve-se levar em conta ainda o histórico de vida do
paciente que, apesar da dependência, tem conseguido trabalhar e cumprir os
horários. Sendo importante, nesse caso, tentar o tratamento sem internação, a
fim de que não se rompa seu vínculo com a disciplina imposta por atividades
estudantis ou profissionais, caso não representem perigos para o paciente nem
para os outros.
Em qualquer caso, não se pode desconsiderar que,
internado ou não, a adoção de atividades que despertem a espiritualidade e
permitam a ocupação útil do paciente contribui significativamente para elevar a
sua autoestima, que, por sua vez, enseja a motivação para se abancar no
tratamento.
Quando o paciente solicita a internação com
insistência, é muito provável que esteja sob grave ameaça a sua integridade
física, em virtude de dívidas contraídas com a compra de drogas, pressionada e
com medo, a pessoa ameaçada tende a esconder esse fato de seus familiares, o
que poderá resultar e agressões físicas ou morte.
No curso das avaliações, o paciente sob ameaça tem
prioridade no ingresso para ser colocado o quanto antes sob proteção especial.
Os pais costumam omitir tais ameaças, porque sofrem a coação das cobranças à
porta de casa, exercidas diretamente pelos traficantes, mas não têm a coragem
de denunciá-los à polícia, porque temem pela represália desses criminosos. Não
são pouco os jovens que, em decorrência do sofrimento, buscam com determinação
a terapia.
As experiências indicam que o tratamento da
dependência é procurado pela maioria somente quando a família não suporta a
situação, inclusive por acreditar nas promessas difíceis de serem cumpridas
pelo dependente. Quando não de uma grande confusão, como a prisão em flagrante,
porque o dependente foi surpreendido furtando bens para conseguir a droga, ou
um acidente de trânsito so o efeito de bebidas ou drogas ilícitas.
Todavia, nem sempre o toxicômano tem o tempo a seu
favor, para realizar o caminho de volta. Algo muito trágico pode surpreendê-lo
de maneira irremediável, seja quando assassinado pelas mãos ávidas de vingança
dos narcotraficantes, ou pela morte em acidentes com veículos, ou, ainda,
quando vítima de overdose. Alguns jovens foram, lamentavelmente, assassinados,
poucos dias antes da data marcada para a internação.
Crescem os casos de adolescentes drogaditos que são
apresentados para o tratamento pelos avós, porque os pais são igualmente
dependentes. As avós nos surgem como verdadeiros anjos de ternura, cujos
semblantes, apesar de vincados pela angústia e pelas marcas do tempo, seguem
saturados de bondade e paciência, enquanto relatam, resignadas, os seus
padecimentos, demonstrando que sublimaram a dor. Não se rebelam ante o
problema, parecem preparadas para suportar tudo, ante a força do amor
incondicional que nutrem pelos netos. Corajosas, não escondem o que sentem,
deixam que as lágrimas corram dos olhos para o coração.
Certo dia, uma avó nos disse:
“Preciso salvar o meu neto, porque os pais á não têm
mais jeito. Estão perdidos no crack e, sem rumo, saíram pelo mundo afora. Agora
somente eu e ele moramos juntos. Necessito tirar o meu neto das drogas. Mas eu
sou pobre, vivo de minha pequena aposentadoria. Às vezes, nos faltam dos
remédios à comida porque meu neto leva o pouco dinheiro que tenho.”
A idosa senhora, embora de pouca instrução escolar,
havia adquirido a sabedoria na universidade da vida. Resoluta, preocupava-se
com a saúde e a educação do neto. Mas reclamava que, com as drogas, o neto
deixara de lhe obedecer. Sentia que o perdia, dia após dia, porque passara a
chegar em casa às altas horas da madrugada. Estava viciado em cocaína.
A seguir, falamos com Theo, 16 anos, que demonstrando
tristeza e emoção disse:
“Meu pai deixou minha mãe quando eu tinha 12 anos.
Pouco depois, ela passou a beber e a consumir crack. Ela se fechava no quarto e
consumia drogas em casa mesmo. Muitas vezes, a vi deitada no chão de bruços. Se
eu tentasse ajudá-la, ela gritava para eu não me aproximar. Um dia arrumou as
malas e disse que iria atrás de meu pai, e nunca voltou. Por isso, estou
morando com a minha avó há dois anos. Minha mãe nunca mais nos procurou. Farei
o tratamento, não por mim, mas pela minha avó. Já não suporto mais vê-la chorar
e rezar de joelhos, em frente à imagem de Nossa Senhora.”
Em razão das emoções que foi levado a sentir ao
recordar do sofrimento de sua avó, Theo não conseguiu prosseguir.
Repentinamente, as lágrimas inundaram seus olhos, momento em que cuidamos de
reanimá-lo, relacionando suas reais possibilidades de vencer as drogas. Menos
fragilizado, perguntou: “Então, quando posso começar?”
Assim, chamamos a avó para integrar o momento final
do encontro, informando-lhe quais providências teriam de ser adotadas para o
breve ingresso.
No entanto, cinco dias depois, a avó telefonou
aflita, informando que o seu neto havia desaparecido, mas que estava
providenciando os exames solicitados, porque aquela não era a primeira vez que
ele se ausentava de casa.
No dia seguinte, o jornal noticiava que o corpo de
Theo havia sido encontrado em um canavial, alvejado por muitos disparos de arma
de fogo.
A notícia trouxe enorme frustração à nossa equipe,
porque não dói possível alcançar a tempo a vida de Theo, seqüestrado que fora
por mãos homicidas. Não foi possível saber se, quando da entrevista, Theo á
estava sob ameaça. Se eventualmente soubesse, não a revelou por medo ou porque
não e importância ao fato.
O crime abriu profunda ferida no coração de sua avó,
enquanto ampliava o número de homicídios de adolescentes, decorrentes da
dependência química.
A melhor prevenção da dependência, ou a sua cura,
começa pela ação da família, ao se equipar de conhecimentos a respeito do
assunto, freqüentar os grupos de autoajuda e adotar práticas que despertem os
sentimentos de espiritualidade.
Introduzir no lar o estudo do evangelho do Cristo,
apertar ou reatar os laços com a religião da família são providências que não
passarão desprotegidas pelo filho envolvido com as drogas. Pouco a pouco ele
aceitará o tratamento, ao ver a mobilização dos familiares em torno da oração e
da fé. Essas demonstrações de amor o sensibilizarão com certeza, e produzirão
em tempo os resultados desejados, especialmente pela eficácia da atuação das
forças do invisível.
Ainda que o dependente olhe com desdém, a
movimentação dos familiares, esse cerco afetivo o ajudará a aceitar ajuda. O
desejo de se curar, embora seja extremamente subjetivo, é percebido
através de alguns indícios.
Nas entrevistas avaliativas, busca-se realizar uma
leitura emocional do dependente, avaliando suas reações durante a conversa, com
o intuito de se examinar o grau de complexidade de cada situação.
Esse desejo, quando inexistente, há de ser
conquistado pelo grupo familiar, porque o quanto antes se iniciar a terapia,
melhor. Ninguém ignora os permanentes riscos a que o dependente estará exposto,
enquanto não se liberar do vício.
Há um momento em que o somatório de padecimentos
físicos e morais lhe pesam tanto que levam o dependente à intensa saturação do
problema, surgindo, senão o desejo, a necessidade imperiosa de abandonar os
becos do tráfico, para a retomada dos caminhos que o lêem a uma vida saudável.
Por distração ou espírito de aventura, ou mesmo para
completar seus vazias emocionais ou, ainda, para calar suas angústias,
derivadas de conflitos psicológicos, transtornos neurológicos ou por processo
obsessivo, ninguém consegue deixar os tóxicos para continuar sendo o mesmo.
Abandonar as drogas e se curar exige uma ampla
transformação pessoa. Significa romper com o modelo de vida que não deu certo.
Se houve coragem para se lançar às drogas, o agora reclama igualmente ousadia,
esforço e perseverança para a adoção de um novo paradigma, a se constituir em
um Projeto de Vida.
Se após a terapia a pessoa retoma os velhos hábitos e
volta aos mesmos ambientes no convívio com as mesmas companhias, em pouco tempo
poderá se contaminar de novo com as fragilidades, com as circunstâncias e a
convivência que cuidarão de atraí-lo de volta às drogas.
Isso não significa que, após a terapia, a família
deva mudar de endereço, porque as drogas lamentavelmente estão presentes em
quase todos os bairros e cidades.
A mudança há de ser pessoal e intransferível. A cura
real será o resultado da transformação interior, uma vez que o ser humano é o
que pensa e realiza, não o que ele diz e deseja.
A verdadeira saúde não se restringe apenas à harmonia
e ao funcionamento dos órgãos, possuindo maior extensão, que abrange a
serenidade íntima, o equilíbrio emocional e as aspirações estéticas,
artísticas, culturais, religiosas.
Filhos da dor –
prevenção e tratamento da dependência de drogas
Relatos e casos reais –
Vilson Disposti
(continua)
AS MÃES DE CHICO XAVIER
Saulo Gomes
(organizador)
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